segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A QUESTÃO DP GÊNERO E O ENSINO DE LÍNGUA POR MARCUSCHI

Diante da multiplicidade de gêneros existentes e diante da necessidade de escolha, pergunta-se: será que existe algum gênero ideal para tratamento em sala de aula? Ou será que existem gêneros que são mais importantes que outros? Esta questão será enfocada no momento em que nos dedicarmos a analisar e sugerir sequências didáticas, mas desde logo deve ficar claro que não há resposta consensual sobre a questão. Os próprios PCNs tem grande dificuldade quando chegam a este ponto e parece que há gêneros mais adequados para a produção e outros mais adequados para a leitura, pois parece que em certos casos somos confrontados apenas com um consumo receptivo e em outros casos temos que produzir os textos. Assim, um bilhete, uma carta pessoal e uma listagem são importantes para todos os cidadãos, mas uma notícia de jornal, uma reportagem e um editorial são gêneros menos praticados pelos indivíduos, mas lidos por todos.
Questões deste tipo devem ser por nós enfrentadas na hora de decidir o trabalho efetivo e nos voltaremos a elas adiante. Mas vejamos aqui algumas características de alguns gêneros e como eles se organizam. Tentemos aplicar alguns dos princípios básicos desenvolvidos até este momento considerando estes gêneros. Trata-se de um breve exercício:
gêneros Domínios discursivos Função, aspectos formais, tipos envolvidos
Carta pessoal
Editorial de jornal
Resumo de conferência
Piada
Romance
Conversação espontânea
Aula expositiva
Tese de doutorado
Sermão
Ordem do dia
Bula de remédio
Receita culinária
A investigação até aqui trazida é de interesse aos que trabalham e militam na área do ensino de língua de um modo geral, seja de língua materna ou de segunda língua / língua estrangeira. Também deve ser um indicador de quão redutora está sendo a visão que os recentíssimos Parâmetros Curriculares Nacionais, lançados pelo MEC para o ensino fundamental e médio no que diz respeito à diversidade de produção textual . Essa redução ou, mais especificamente, essa pobreza se fazia lamentavelmente presente nos manuais de ensino de língua tradicionais e talvez agora se torne possível dar um passo à frente.
Uma análise dos manuais de ensino de língua portuguesa mostra que há uma relativa variedade de gêneros textuais presentes nessas obras. Contudo, uma observação mais atenta e qualificada revela que a essa variedade não corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que aparecem nas seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os mesmos. Os demais gêneros figuram apenas para “enfeite” e até para distração dos alunos. São poucos os casos de tratamento dos gêneros de maneira sistemática. Lentamente, surgem novas perspectivas e novas abordagens que incluem até mesmo aspectos da oralidade. Mas ainda não se tratam de modo sistemático os gêneros orais em geral. Apenas alguns, de modo particular os mais formais, são lembrados em suas características básicas.
Não é de se supor no entanto que os alunos aprendam naturalmente a produzir os diversos gêneros escritos de uso diário. Nem é comum que se aprendam naturalmente os gêneros orais mais formais, como bem observam Dolz & Schneuwly (1998). Por outro lado, é de se indagar se há gêneros textuais ideais para o ensino de língua. Tudo indica que a resposta seja não. Mas é provável que se possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante.
Deve ter ficado claro que há muito mais gêneros na escrita do que na fala, o que é de certo modo surpreendente, mas explicável pela diversidade de ações linguísticas que praticamos no dia a dia na modalidade escrita. As civilizações em que a escrita tem um papel central nas tarefas do dia a dia, mormente no comércio, indústria e produção do conhecimento, tendem a diversificar de maneira acentuada as formas textuais utilizadas. Esta tendência torna de algum modo difícil a vida do cidadão comum que já não consegue dominar com facilidade essa verdadeira selva textual. Por isso é importante que nos dediquemos a entender melhor essa questão.
Ao lado do problema da diversidade textual, há ainda a visão hoje comumente aceita e tão claramente defendida por Bakhtin (1979) que aponta os gêneros textuais como esquemas de compreensão e facilitação da ação comunicativa interpessoal. Essa estabilização de formas textuais repercute não só no processo de compreensão, mas na própria estabilização de formas sociais de interação e raciocínio.
Assim, em última análise, a distribuição da produção discursiva em gêneros tem como correlato a própria organização da sociedade, o que nos faz pensar no estudo sócio-histórico dos gêneros textuais como uma das maneiras de entender o próprio funcionamento social da língua. Isto nos remete ao núcleo da perspectiva teórica dos estudos linguísticos sobre o texto e do texto aqui empreendidos, ou seja, a visão sócio-interacionista.
Visão dos PCNs a respeito da questão dos gêneros
Ressalte-se a posição enfática e explícita defendida corretamente nos PCNs de que a língua falada e a língua escrita não se opõem de forma dicotômica nem são produções em situações polares (p. 55). Além disso, é notável a posição de que a LF e a LE se dão relacionadas no contexto do contínuo dos gêneros textuais (p. 56) com diferenças tidas como graduais. Uma ideia aproximada disso é fornecida nos dois quadros (pp. 41 e 43) com gêneros similares nas duas modalidades. Importante é a constatação de que uma das confusões mais comuns que
“circulam na escola a respeito da relação entre a modalidade oral e a escrita (é) imaginar a escrita como mera transposição do oral, ou tratar as especificidades de cada modalidade como polaridades.” (p. 55)
A ênfase desse princípio geral deve ser cada vez mais acentuada, pois não há equívoco mais inconveniente do que tratar a escrita como mera transposição da fala para o papel na forma gráfica. A escrita não é a representação gráfica da fala.
São, no entanto, vagas e imprecisas as observações de detalhe sobre a qualidade das relações entre fala e escrita, pois parece que fala e escrita se oporiam, pelo “interesse pedagógico”, como se uma (a fala) fosse o “vernacular”, isto é, aquela forma de comunicação espontânea, face a face, cotidiana e coloquial (p.15); e outra (a escrita) a “norma culta” referente à língua padrão e socialmente prestigiada. Mas isto contrastaria com a observação de que, precisamente daí decorrem preconceitos ou “mitos” dos quais a escola deveria livrar-se, tais como:
“o (preconceito) de que existe uma única forma ‘certa’ de falar, o de que a fala ‘certa’ é a de uma determinada região (a carioca, por exemplo), o de que a fala ‘certa’ se aproxima do padrão da escrita, o de que o brasileiro fala mal, o de que é preciso ‘consertar’ a fala do aluno para evitar que ele escreva errado”. (p. 15)
Tidas pelos PCN como “insustentáveis” e culturalmente mutiladoras, essas crenças são nefastas e a escola deveria evitá-las mostrando que há diversas formas de se expressar de acordo com as situações, os contextos e os interlocutores, de modo que:
“A questão não é de correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização adequada da linguagem.” (p. 16)
Diante de uma tal afirmativa, a inevitável pergunta de todo(a) o(a) professor(a) em sala de aula será esta: “Então o que faço com um aluno que diz ‘nós vai’? ”. Seguramente, a posição dos PCNs não dá pistas para a angustiante expectativa de uma resposta por parte do(a) professor(a) diante de alunos em carne e osso.
Gêneros textuais na língua falada e escrita de acordo com os PCNs
Este aspecto é complexo e não passa despercebido aos PCNs. Contudo, as observações são no geral vagas. Às vezes se trata de tipos de texto ou sequências discursivas (p. 45) tais como: narrativa, descrição, exposição, argumentação e conversação. Em outros casos trata-se de gêneros textuais (p.40 e 43): entrevista, debate, palestra, conto, novela, artigo, reportagem etc. Não se faz uma distinção sistemática entre tipos (enquanto constructos teóricos) e gêneros (enquanto formas textuais empiricamente realizadas e sempre heterogêneas). Consideram-se, apenas gêneros formais e não os mais praticados nas atividades linguísticas cotidianas. Falta uma noção da gradação de que se fala em outras partes dos PCNs. Também é curioso que se tomem gêneros diversos para tratar a produção e a compreensão, como se observa no quadro apenso à p. 40 quando comparado com o da p. 43, aqui reproduzidos para observação.
O Quadro 1 traz os gêneros sugeridos para trabalhar a “prática de compreensão de textos”; já o Quadro 2 apresenta os gêneros sugeridos para trabalhar a “prática de produção de textos”.
(quadro 1, p. 40)
GÊNEROS PREVISTOS PARA A PRÁTICA DE COMPRENSÃO DE TEXTOS
LINGUAGEM ORAL LINGUAGEM ESCRITA

LITERÁRIOS





DE IMPRENSA




DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA



PUBLICIDADE Cordel
Texto dramático


Comentário radiofônico
Entrevista
Debate
Depoimento


Exposição
Seminário
Debate
Palestra


propaganda


LITERÁRIOS






DE IMPRENSA




DE DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA



PUBLICIDADE Conto
Novela
Romance
Crônica
Poema
Texto dramático

Notícia
Editorial
Artigo
Reportagem
Carta do leitor
Entrevista

Verbete enciclopédico
(nota / artigo)
Relatório de experiências
Didático (textos, Enunciados de
questões)

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O que se nota é que há muito mais gêneros sugeridos para a atividade de compreensão do que para a atividade de produção. Isto reflete em parte a situação atual em que os alunos escrevem pouco e em certos casos quase não escrevem. Parece que produzir textos é uma atividade ainda pouco conhecida e mais conhecida é a que diz respeito à compreensão. As atividades relativas á compreensão são sempre em maior número.
(quadro 2, p. 43)
GÊNEROS PREVISTOS PARA A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS
LINGUAGEM ORAL
LINGUAGEM ESCRITA
LITERÁRIOS


DE IMPRENSA




DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA




Entrevista
Debate
Depoimento


Exposição
Seminário
Debate

LITERÁRIOS


DE IMPRENSA



DE DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA

Conto
Poema

Notícia
Editorial
Carta do leitor
Entrevista

Relatório de experiências
Esquema e resumo de artigos ou verbetes de enciclopédia
Os PCNs não negam que haja mais gêneros, mas estes não são lembrados. Por que não trabalhar telefonemas, conversações espontâneas, consultas, discussões etc., para a fala? Por que não analisar formulários, cartas, bilhetes, documentos, receitas, bulas, anúncios, horóscopos, diários, ata de condomínio e assim por diante, para a escrita? Estes são muito mais comuns do que aqueles lembrados nos quadros 1 e 2.
Na realidade, aqui há um problema de ordem metodológica paradoxal: por um lado, quando os PCNs propõem conteúdos programáticos mostram-se inevitavelmente redutores e, por outro lado, quando concretizam as ações, tornam-se homogeneizadores, sugerindo que todos os professores trabalhem determinados fenômenos. O fato é que para planos dessa ordem dever-se-ia operar no nível conceitual, explanatório e não de conteúdos. Nesses casos, noções, estratégias e processos com as respectivas exemplificações são mais importantes do que conteúdos específicos. O caso dos gêneros textuais é apenas um exemplo paradigmático disso.
Uma tarefa interessante seria analisar os livros didáticos observando quais são as propostas por eles feitas para a produção textual com base nos gêneros. Esta análise já foi em parte feita no trabalho de doutorado de Williany Miranda da Silva que analisou os exercícios de produção textual com base numa teoria de gêneros. Sua constatação foi que a escola ainda não se preocupa com a produção textual baseada em gêneros.
Os gêneros textuais em sala de aula: as “sequências didáticas”
[[NOTA: Embora não possa trazer aqui mais dados, aconselho vivamente a leitura da obra se Bernard SCHNEUWLY ; Joaquim DOLZ e Colaboradores. 2004. Gêneros Orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado de Letras. Que foi recentemente traduzida por Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro.]]
Dolz & Schneuwly preocupam-se em fornecer elementos de interesse para o ensino da oralidade em sala de aula e todo o esforço volta-se para a consecução deste objetivo. Central é a metodologia utilizada para construir o que ficou conhecido nessa escola como ensino por sequências didáticas, realizado com base em gêneros textuais diversos, especialmente os gêneros orais mais elaborados. Para tanto, os autores desenvolvem uma noção de gênero, concebido como um instrumento de comunicação, que se realiza empiricamente em textos. Devido ao seu alto poder heurístico, Schneuwly (1994) chamou os gêneros textuais de mega-instrumentos em outro trabalho, o que é retomado aqui, como se observa abaixo.
Como os gêneros se acham sempre ancorados em alguma situação concreta, particularmente os orais, os autores julgam plausível partir de situações claras para trabalhar a oralidade. Assim, sendo o texto um evento singular e situado em algum contexto de produção, seja ele oral ou escrito, no ensino, é conveniente partir de uma situação e identificar alguma atividade a ser desenvolvida para que se inicie uma comunicação. Por exemplo, explicar a migração das aves diante de uma turma de alunos ou produzir uma entrevista radiofônica.
Em sua postura teórica central, Dolz & Schneuwly (1998:64) seguem a posição bakhtiniana de que:
“Para possibilitar a comunicação, toda sociedade elabora formas relativamente estáveis de textos que funcionam como intermediários entre o enunciador e o destinatário, a saber, gêneros”.
E exploram os gêneros com base na metáfora dos “instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação (e de aprendizagem)” (p.64). Assim, quando alguém tem de agir discursivamente deve instrumentalizar-se com um conjunto de utensílios, por exemplo, usando o garfo para comer, o machado para cortar uma árvore ou então um gênero como “instrumento para agir discursivamente”. Segundo os autores, o gênero
“É um instrumento semiótico constituído de signos organizados de maneira regular; este instrumento é complexo e compreende níveis diferentes; é por isso que o chamamos por vezes de ‘mega-instrumento’, para dizer que se trata de um conjunto articulado de instrumentos à moda de uma usina; mas fundamentalmente, trata-se de um instrumento que permite realizar uma ação numa situação particular. E aprender a falar é apropriar-se de instrumentos para falar em situações discursivas diversas, isto é, apropriar-se de gêneros” (p.65).
A metáfora do instrumento deve ser muito bem entendida, pois os autores não ignoram o risco de uma noção instrumental de língua, já que isto seria inadequado. Por isso indagam-se: “De que modo definir o gênero como instrumento?” (p. 65) Para tanto, na linha de Bakhtin (1979), distinguem três dimensões essenciais:
1) os conteúdos que se tornam decidíveis no gênero;
2) a estrutura comunicativa particular dos textos que pertencem ao gênero;
3) as configurações específicas de unidades linguísticas como traços da posição enunciativa do enunciador, os conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam essa estrutura.
Isto é interessante porque desse modo, na ótica escolar, os gêneros se tornam um ponto de referência concreto para os alunos, operando como “entidades intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das práticas”. Torna-se, assim, fácil operar com os gêneros que asseguram um quadro de estratégias para a análise e a produção textual. Os gêneros são tidos, pois, como as unidades concretas nas quais deve dar-se o ensino (p.66).
Na realidade, os dois autores estão interessados na noção de gênero na medida em que ela lhes será útil no trabalho com a oralidade. A preocupação vai centrar-se, em essência, no que os autores chamam de gêneros formais públicos produzidos em situações públicas ritualizadas e com modelos de produção bem definidos, tais como sermão, debate televisivo, conferência, entrevista radiofônica e outros desta natureza trabalhados detidamente pelos autores em forma de sequências didáticas. Pois, a hipótese é a de que os alunos já dominem os gêneros informais da vida cotidiana (p. 68) não se necessitando de trabalhá-los de modo especial. Os gêneros formais públicos, no entanto, têm formas pré-codificadas e rígidas que não se determinam na situação concreta. Precisam de estímulo e aprendizagem especial, daí serem um objeto preferencial, ou até mesmo “objeto autônomo” do ensino na oralidade.

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